Invisibilidade e falta de oportunidades dificultam acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho: 'O mínimo não é privilégio', diz professora
01/05/2025
(Foto: Reprodução) Para o Dia do Trabalho, celebrado nesta quinta-feira (1º), o g1 entrevistou três mulheres transgênero que atuam em diferentes áreas de trabalho. Atualmente, não há números oficiais que indiquem quantas pessoas trans vivem no Brasil. Thara Wells, Lellis Cássia e Victoria Vlad'iel
Arquivo pessoal
Compreender a composição da sociedade brasileira é fundamental em diversas áreas, especialmente para a formulação de políticas públicas voltadas a grupos minoritários. No entanto, quando se trata da população trans no Brasil, ainda há uma escassez de dados que permitam mapear com precisão o tamanho desse grupo e identificar as ações necessárias para garantir seus direitos.
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Não há números oficiais que indiquem quantas pessoas trans vivem no Brasil. Tampouco há informações sobre a empregabilidade desta população no país, conforme informado pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Mas, apesar da falta de dados, a comunidade trans existe, cresce e luta diariamente por visibilidade, respeito e inclusão.
No Dia do Trabalhador, celebrado nesta quinta-feira (1º), o g1 conversou com mulheres trans, que compartilham suas experiências com o preconceito e as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho.
Formada em biologia, Victoria Vlad'iel Diegoli, de 25 anos, é professora de ciências na rede estadual há quatro anos. Ela conta que começou a dar aulas antes de iniciar a transição de gênero. Quando olha para trás, a jovem diz que sempre sentiu que a licenciatura e a sala de aula faziam parte de seu destino.
"Sempre gostei de animais e, a princípio, cursei biologia para trabalhar com isso. Gosto muito de ensinar e aprender sobre o universo. Criei gosto em trabalhar com crianças, adolescentes e colegas de diversas áreas. Trabalhar com seres que ainda estão se entendendo no mundo é desafiador, mas, muitas vezes, é divertido. O carinho que muitos têm pela gente é maravilhoso", celebra.
Victoria é professora de ciências na rede estadual e leciona para estudantes do 6º ao 9º ano
Arquivo pessoal
Durante seu período inicial de transição, Victoria chegou a ficar desempregada. Quando retornou à área da educação, já como uma mulher trans, ela diz que sentiu muito medo e angústia do que poderia enfrentar no ambiente de trabalho. Atualmente, Victoria dá aula para estudantes do 6º ao 9º ano na rede estadual.
"Eu tive muitos receios, mas acabei indo para um ambiente respeitoso, onde trabalhei com duas mulheres trans e travestis que me inspiraram muito: uma colega professora de matemática e uma aluna do 9º ano. Ambas me fortaleciam sem mesmo saberem disso", diz.
Apesar de hoje trabalhar em um ambiente que considera confortável, Victoria revela que passou por situações constrangedoras em outras instituições de ensino, inclusive, por episódios de transfobia.
"Também trabalhei em escolas com uma comunidade mais desafiadora, onde sofri violência verbal, com palavras pejorativas relacionadas a pessoas LGBTQIA+, na maioria das vezes ditas pelos alunos. Sou abençoada, com uma boa família e com estabilidade financeira, mas não se pode ter tudo. A autossabotagem é um desafio constante", analisa.
Nascida e criada em uma família mórmon, Victoria conta que chegou a frequentar a igreja por boa parte de sua vida.
"Venho de uma família bastante amorosa e tradicional, pois meus pais, com quem ainda convivo, estão juntos até hoje. Cresci em um contexto religioso: minha família é mórmon, e, apesar de ainda estar registrada na igreja, parei de frequentar aos 22 anos", lembra.
Foi cerca de um ano depois, aos 23 anos, que Victoria se descobriu transgênero.
"Sou um pouco conhecida em Sorocaba (SP) por conta de alguns trabalhos como drag queen e apresentadora. Por meio da arte transformista, pude experimentar melhor a desconstrução e ressignificação de arte e gênero, levando isso para meu dia a dia. Minha transição começou, de fato, aos 23 anos de idade", explica.
"Minha transição foi muito gradual, e, mesmo antes de eu perceber que eu iria me tornar uma garota, eu estava me adequando à ideia inconscientemente por meio da androginia. As pessoas me comparavam com o David Bowie e o Boy George. Escolhi o nome Victoria porque eu tenho tudo para vencer", complementa.
Victoria diz que era frequentemente comparada com ícones da androginia
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'O mínimo não é privilégio'
Victoria reconhece que teve oportunidades de trabalho e estudo que, talvez, não teria depois da transição de gênero. Para ela, o apoio da família foi essencial para passar por todos os obstáculos que enfrenta até hoje.
"Hoje eu entendo que o mínimo não é privilégio. Um trabalho digno e estudo deveriam ser o mínimo. Eu só cheguei aqui graças a uma família que me ama. Talvez eu tenha tido algumas oportunidades, pois, quando me formei e comecei a trabalhar na área, eu ainda não tinha transicionado, diferente de muitas pessoas, que começaram bem mais novas", comenta.
A professora aconselha quem pensa em passar pela transição a se preparar financeiramente e fazer reservas de dinheiro para o caso de enfrentar dificuldades de se manter no mercado de trabalho.
"Invista em tesouro direto, deposite mais na poupança. Enquanto as pessoas cisgênero investem em bens como casa e carros, as pessoas trans, muitas vezes, economizam anos para pagar uma cirurgia de afirmação de gênero. Tenha consciência desde cedo. Experimente bastante, respeite e se interesse sobre as travestis mais velhas e as hierarquias da comunidade", pontua.
Professora iniciou no meio antes de sua transição
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Trans e farmacêutica
As vidas de Victoria e Lellis Cássia Perez, de Sorocaba, se parecem em diversos pontos, mas principalmente em um bem específico: o reconhecimento da transgeneridade aos 23 anos de idade.
O período de transição de Lellis começou quando a jovem estava no início do curso de farmácia. Para ela, a parte mais difícil desta etapa foi ver as pessoas errando seu verdadeiro pronome ou a chamando pelo "nome morto" - termo utilizado para se referir ao nome de batismo de pessoas transgênero.
"Eu transicionei durante a faculdade e meu emprego CLT. As pessoas já me conheciam de uma forma e estava passando para 'outra pessoa'. Os erros dos pronomes, do meu nome verdadeiro, me afetavam e machucavam demais. Eu tive que ter muita paciência, pois pensava que tudo melhoraria com o tempo. De qualquer forma, é sempre difícil", opina.
Lellis Cássia Perez se forma no ensino superior em junho deste ano. Jovem cogitou não trocar nome nos documentos por receio de não conseguir emprego
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De acordo com a estudante, a paixão pela farmácia veio ainda em seu primeiro emprego em uma drogaria. Foi nesta experiência profissional que a jovem teve cada vez mais curiosidade em entender como as bulas e os medicamentos funcionavam.
"Fiquei cinco anos trabalhando no mesmo lugar. Os anos foram passando e eu quis saber cada vez mais sobre do quê os medicamentos e a farmacologia se tratavam, além de, claro, o meu amor por auxiliar e explicar as coisas ao cliente aumentar. Fiz um curso na área e foi aí que eu definitivamente me encontrei. Logo depois, me matriculei na universidade. Eu já amava o que fazia", explica.
O medo de não conseguir emprego na área de formação também fez parte da trajetória de Lellis durante a transição de gênero. A jovem conta que até cogitou não trocar o nome nos documentos pessoais por receio de não ser contratada.
"Eu tive muito medo de trocar meu nome nos documentos oficiais e não ser contratada por ser uma travesti. Mas as pessoas próximas me deram coragem para trocar, então, venci meus medos. Algumas pessoas não sabem lidar e não estão aptas a se socializarem com transgêneros", lamenta.
Prestes a se formar no ensino superior e no curso que sempre sonhou, Lellis diz que deseja a mesma realização profissional para todas as pessoas trans.
"Quero muitas de nós onde estou. Quero ver muitas de nós virando empresárias, doutoras, e outros cargos de liderança. Nós merecemos estar no mesmo patamar. Infelizmente, a sociedade não dá abertura e oportunidade para pessoas trans sequer iniciarem os estudos."
'Infelizmente, a sociedade não dá abertura e oportunidade para pessoas trans sequer iniciarem os estudos', analisa Lellis Cássia Perez
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Falta de perspectiva
A falta de acesso ao estudo e ao mercado de trabalho pode fazer com que as pessoas trans não tenham perspectiva de futuro e encontrem na prostituição a única forma de sustento. É o que explica Thara Wells Corrêa, a primeira conselheira tutelar trans de Sorocaba.
"Vemos o reflexo deste abandono quando falamos que mais de 90% da nossa população estão na prostituição como a única forma de sobrevivência. Veja que estar na prostituição por questão de sobrevivência não é sinônimo de sobrevivência e, sim, de aprisionamento social. Porque quando essas pessoas, que, na sua maioria, foram lançadas ali ainda na adolescência, decidem sair, pois seus corpos já não 'servem mais', seja pelo fator idade ou pela depreciação física ou psicológica, fazem o quê da vida? Não podem acessar o mercado de trabalho por não terem capacitação suficiente, devido a todos os entraves aos quais foram submetidas no período escolar na infância", pontua.
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Hoje, formada em serviço social e exercendo o cargo de conselheira tutelar em Sorocaba, Thara se depara com situações semelhantes às que viveu há anos, como ser expulsa de casa na adolescência.
"Tem pesquisas que mostram que 75% de adolescentes entre 13 e 14 anos são expulsos de casa devido à identidade de gênero e são lançados nas ruas. A partir disso, viram reféns de toda marginalidade que orbita nesse universo."
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Violências no ambiente de trabalho
Para a conselheira tutelar, o emprego e o estudo para uma pessoa trans é uma garantia a mais de segurança, porém, mesmo nestes ambientes, ainda há violências a serem enfrentadas.
"Quando falamos do acesso das pessoas trans ao mercado de trabalho, precisamos falar também da permanência. A importância de estar empregado é ter a garantia de comida na mesa e de não morrer, visto que nossa expectativa de vida é baixíssima. Mas também não quero romantizar que acessar o mercado de trabalho muda nossas vidas, porque para permanecer nele é preciso ter muita resiliência e resistência diária, quando falamos de respeito ao nome, à nossa identidade, ao uso do banheiro, ao olhar das pessoas e, novamente, às políticas públicas transfóbicas", ressalta.
Para Thara, mais do que segurança financeira, os estudos trouxeram à vida dela uma perspectiva de futuro.
"De me sentir sistematicamente viva. De poder fazer planos, de acessar lugares que muitas vezes achei que não eram para mim. Saber que também mereço respeito e sou parte dessa sociedade, que democraticamente ajudei a construir", afirma.
Thara Wells, conselheira tutelar de Sorocaba
Reprodução/Instagram
🏳️⚧️ População invisível
Uma pesquisa inédita do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que 2,9 milhões de adultos se declararam homossexuais ou bissexuais em 2019. Em 2023, o IBGE divulgou que iria estimar, pela primeira vez, o tamanho da população trans, travesti e não binária do Brasil.
De acordo com o IBGE, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde começou a coleta de dados em outubro de 2023. O instituto informou que ainda está totalizando os dados da pesquisa e que a data de divulgação dos resultados ainda não foi definida.
A ausência de um mapeamento que identifique o tamanho e os perfis da população trans atinge também o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que informou não ter, até o momento, informações sobre a empregabilidade de pessoas trans no Brasil.
"Estamos analisando como incluir estas informações, mas precisamos lidar com a resistência na coleta e disponibilização dessas informações nos dados enviados pelas empresas ao MTE. Mesmo para o nome social, não há confiabilidade, por dificuldades por parte dos respondentes."
Políticas municipais
Em Sorocaba, a prefeitura informou que desenvolve políticas para a população trans em diferentes áreas, incluindo a da empregabilidade.
Entre essas ações, citou, por exemplo, a aproximação com a população trans em situação de rua que passa pela entidade SOS, oferecendo a elaboração de currículo e envio ao Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT) ou diretamente para empresas que procuram a Coordenadoria de Políticas para a Diversidade Sexual.
Porém, conforme a prefeitura, ainda não existe nenhuma iniciativa municipal que viabilize o acesso das pessoas trans ao mercado de trabalho ou a cursos de qualificação profissional.
Marcha Trans de Sorocaba (SP) é organizada pela ATS
Reprodução/Facebook
A situação é parecida em Jundiaí (SP). A cidade conta com o Espaço Jundiaí Empreendedora, que funciona como uma ponte entre as empresas e os que estão em busca de oportunidade de emprego.
Segundo a prefeitura, com frequência, o contato com empresas inclusivas é feito para o encaminhamento de pessoas trans e com sucessos recentes. No entanto, ainda não existem ações exclusivas para empregabilidade desta população. A prefeitura informou também que Jundiaí não possui dados oficiais sobre a quantidade de pessoas trans residentes na cidade.
"No entanto, a temática tem sido pauta de discussão no Núcleo de Políticas Públicas da prefeitura, com o objetivo de desenvolver metodologias de pesquisa que permitam uma leitura mais precisa e respeitosa dessa realidade."
*Colaborou sob supervisão de Ana Paula Yabiku
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